Uma crônica de Luiz Fernando Emediato
Esta crônica é para G.H. Wills, meu leitor; para Nicole, minha amiga; e para Rodrigo, meu filho. Todos eles acreditam em Deus.
Houve um tempo em que ele acreditou em Deus. Haviam-lhe dito que ele existia e ele via o rosto de Deus na dourada estrela da manhã, no silêncio frio das madrugadas, no riso e na tristeza, na luz e na escuridão. Eram tempos felizes, aqueles.
Ele não se lembra mais quando perdeu a fé e desistiu de Deus, mas isso - a data não tem importância. O significativo é que deixou de pensar na existência de Deus, de qualquer criador, e seguiu em frente, carregando como um duro fardo suas pequenas certezas, suas grandes dúvidas, seus sonhos, esperanças, ilusões.
No início pensou que seguir vivendo sem fé seria amargo e vazio. A um homem sem Deus tudo seria permitido, até o crime? Lembrava da sua infância, do catecismo, da missa, dos padres, das confissões, do pecado e do perdão e perguntava-se o que faria da vida a partir de agora - quando não havia mais pecado e, portanto, culpa, remorso, punição.
Mas a vida continuou igual sem Deus. Havia, é claro, a angústia, a incerteza diante da morte a caminho - todos os dias ele morria mais um pouco, as rugas surgindo no canto dos olhos e dos lábios, o relógio correndo, os olhos apertando-se, às vezes cinicamente, diante da quase certeza de que a vida é de certa forma absurda e sem sentido, embora ocasionalmente bela, maravilhosa, mágica.
É engraçado, pensa o homem, como ele se desligou tão facilmente da idéia de Deus: sem traumas, sem dor, sem nada. E como, embora sem acreditar, ele lê desde a infância a Bíblia, descobrindo, do Gênesis ao Apocalipse, verdades e mentiras, delírios, fantasias, lições. Um livro o fascina mais que os outros: o Eclesiastes, com suas palavras desesperançadas: vaidade, tudo é vaidade. Todas as coisas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrito.
Geração vai, geração vem, e a terra permanece como sempre, diz o Eclesiastes, e continua: levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo. O que foi, é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer: não há nada de novo sob o sol. Nem mesmo a descrença, acrescentaria o homem - este homem que olha as estrelas à noite (quando há estrelas no céu) e pensa, fascinado, no grande e insolúvel mistério da vida.
Há o tempo de nascer e o de morrer, o tempo de viver e o de voltar ao pó, ao Cosmos, quando a frágil carne se torna outra vez poeira de estrelas, eternidade, silêncio e solidão.
Mas tudo se move, pensa o homem, tudo se move. Ele se lembra então da vez em que viu, no Museu do Espaço, em Washington, o filme Ten (Dez): uma câmera focaliza um casal com seu filho brincando em um parque e vai se distanciando dele, subindo rumo ao universo nas escalas do número dez: vê-se a família, a cidade, depois o Estado, o país, o planeta Terra, o sistema solar, a via Láctea, todas as galáxias, e depois o vazio imensurável - tudo? Na escala inversa, volta-se vertiginosamente ao grupo humano; um corpo, o braço da mulher, a pele, um poro, uma célula, um átomo, o núcleo do átomo, partículas minúsculas, e então outra vez o vazio imensurável - tudo? Eternidade. Silêncio. Solidão.
Como somos frágeis, pensa o homem. É nesse instante dramático em que quase soçobra entre o ser e o nada que o homem olha com inveja aqueles que o cercam e acreditam, de alguma forma, em Deus. Ou em algo. Eles são o equilíbrio? A harmonia? A razão?
Deus é conforto? É paz? É serenidade? O homem sorri levemente enquanto faz essas perguntas e olha os despreocupados rostos dos que têm fé ou não pensam jamais nisso: apenas crêem, mais nada. Às vezes, que estranho, este homem duro sente um grande amor por todos eles como se fossem mais frágeis por iludirem-se? Mas então ele se olha no espelho e pergunta: mas quem se ilude? Eles? Eu?
E então... então ele se lembra com ternura, de anteontem, quando o filho de oito anos perguntou: "Pai, é verdade essa história de Adão e Eva?" E ele, o pai, tentou explicar toda a história do homem e sua evolução: átomos, água, carbono, amebas, megatérios, macacos, homens - a fascinante história da vida e da morte sobre a Terra. "Mas e Deus, pai?", pergunta o menino. E o homem se cala. Mas como manter o silêncio? E então ele pergunta ao menino o que ele acha, e a resposta vem: "Eu acredito". Tão simples. Tão fácil. Tão singelo.
Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida, diz o Apocalipse, este livro cheio de mistérios, visões lisérgicas, sóis negros, rios de sangue, estrelas cadentes, tempestades, céus que se enrolam como pergaminhos, terremotos, mares de vidro, tochas ardentes e monstros alados.
Mas o Apocalipse é um livro terrível melhor voltar ao Eclesiastes: "E eu reconheci que não havia coisa melhor do que alegrar se o homem, e fazer bem enquanto lhe dura a vida".
Com ou sem Deus. Com ou sem Deus meus filhos.
Publicado no Caderno2 do Estado de São Paulo em 27 de setembro de 1987 |