16 abril 2006
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Deus

     Uma crônica de Luiz Fernando Emediato      
Esta crônica é para G.H. Wills, meu leitor; para Nicole, minha amiga; e para Rodrigo, meu filho. Todos eles acreditam em Deus.
     Houve um tempo em que ele acreditou em Deus. Haviam-lhe dito que ele existia e ele via o rosto de Deus na dourada estrela da manhã, no silêncio frio das madrugadas, no riso e na tristeza, na luz e na escuridão. Eram tempos felizes, aqueles.
     Ele não se lembra mais quando perdeu a fé e desistiu de Deus, mas isso - a data não tem importância. O significativo é que deixou de pensar na existência de Deus, de qualquer criador, e seguiu em frente, carregando como um duro fardo suas pequenas certezas, suas grandes dúvidas, seus sonhos, esperanças, ilusões.
     No início pensou que seguir vivendo sem fé seria amargo e vazio. A um homem sem Deus tudo seria permitido, até o crime? Lembrava da sua infância, do catecismo, da missa, dos padres, das confissões, do pecado e do perdão e perguntava-se o que faria da vida a partir de agora - quando não havia mais pecado e, portanto, culpa, remorso, punição.
     Mas a vida continuou igual sem Deus. Havia, é claro, a angústia, a incerteza diante da morte a caminho - todos os dias ele morria mais um pouco, as rugas surgindo no canto dos olhos e dos lábios, o relógio correndo, os olhos apertando-se, às vezes cinicamente, diante da quase certeza de que a vida é de certa forma absurda e sem sentido, embora ocasionalmente bela, maravilhosa, mágica.
     É engraçado, pensa o homem, como ele se desligou tão facilmente da idéia de Deus: sem traumas, sem dor, sem nada. E como, embora sem acreditar, ele lê desde a infância a Bíblia, descobrindo, do Gênesis ao Apocalipse, verdades e mentiras, delírios, fantasias, lições. Um livro o fascina mais que os outros: o Eclesiastes, com suas palavras desesperançadas: vaidade, tudo é vaidade. Todas as coisas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrito.
     Geração vai, geração vem, e a terra permanece como sempre, diz o Eclesiastes, e continua: levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo. O que foi, é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer: não há nada de novo sob o sol. Nem mesmo a descrença, acrescentaria o homem - este homem que olha as estrelas à noite (quando há estrelas no céu) e pensa, fascinado, no grande e insolúvel mistério da vida.
     Há o tempo de nascer e o de morrer, o tempo de viver e o de voltar ao pó, ao Cosmos, quando a frágil carne se torna outra vez poeira de estrelas, eternidade, silêncio e solidão.
     Mas tudo se move, pensa o homem, tudo se move. Ele se lembra então da vez em que viu, no Museu do Espaço, em Washington, o filme Ten (Dez): uma câmera focaliza um casal com seu filho brincando em um parque e vai se distanciando dele, subindo rumo ao universo nas escalas do número dez: vê-se a família, a cidade, depois o Estado, o país, o planeta Terra, o sistema solar, a via Láctea, todas as galáxias, e depois o vazio imensurável - tudo? Na escala inversa, volta-se vertiginosamente ao grupo humano; um corpo, o braço da mulher, a pele, um poro, uma célula, um átomo, o núcleo do átomo, partículas minúsculas, e então outra vez o vazio imensurável - tudo? Eternidade. Silêncio. Solidão.
     Como somos frágeis, pensa o homem. É nesse instante dramático em que quase soçobra entre o ser e o nada que o homem olha com inveja aqueles que o cercam e acreditam, de alguma forma, em Deus. Ou em algo. Eles são o equilíbrio? A harmonia? A razão?
     Deus é conforto? É paz? É serenidade? O homem sorri levemente enquanto faz essas perguntas e olha os despreocupados rostos dos que têm fé ou não pensam jamais nisso: apenas crêem, mais nada. Às vezes, que estranho, este homem duro sente um grande amor por todos eles como se fossem mais frágeis por iludirem-se? Mas então ele se olha no espelho e pergunta: mas quem se ilude? Eles? Eu?
     E então... então ele se lembra com ternura, de anteontem, quando o filho de oito anos perguntou: "Pai, é verdade essa história de Adão e Eva?" E ele, o pai, tentou explicar toda a história do homem e sua evolução: átomos, água, carbono, amebas, megatérios, macacos, homens - a fascinante história da vida e da morte sobre a Terra. "Mas e Deus, pai?", pergunta o menino. E o homem se cala. Mas como manter o silêncio? E então ele pergunta ao menino o que ele acha, e a resposta vem: "Eu acredito". Tão simples. Tão fácil. Tão singelo.
     Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida, diz o Apocalipse, este livro cheio de mistérios, visões lisérgicas, sóis negros, rios de sangue, estrelas cadentes, tempestades, céus que se enrolam como pergaminhos, terremotos, mares de vidro, tochas ardentes e monstros alados.
     Mas o Apocalipse é um livro terrível melhor voltar ao Eclesiastes: "E eu reconheci que não havia coisa melhor do que alegrar se o homem, e fazer bem enquanto lhe dura a vida".
     Com ou sem Deus. Com ou sem Deus meus filhos.

Publicado no Caderno2 do Estado de São Paulo em 27 de setembro de 1987

Comentários em "Deus"

 

4/16/2006 07:00:00 PM : 

Anonymous Anônimo escreveu ...

Muito interesante tu blog.
Parabens. Saludos no Japao de um espanhol.

 

4/17/2006 09:22:00 PM : 

Anonymous Anônimo escreveu ...

Gracias por la visita.
Mirare tambien tu web.
Saludos.

 

4/20/2006 02:36:00 PM : 

Anonymous Anônimo escreveu ...

Sofri um acidente de carro há 5 meses. Meu namorado morreu (10 anos de namoro) e eu quebrei a cabeça, de forma que deformou um pouco meu rosto, tenho uma cicatriz que atravessa toda minha barriga.
Tenho refletido sobre Deus, se Ele quis assim, se Ele tem algo com isso, ou se realmente estamos por nós mesmos, pois seria difícil compreender que uma força ou alguém planejou isso pra mim.

 

4/20/2006 03:39:00 PM : 

Blogger Norberto Kawakami escreveu ...

A conclusão da crônica diz bem:
"E eu reconheci que não havia coisa melhor do que alegrar se o homem, e fazer bem enquanto lhe dura a vida".
Com ou sem Deus.

 

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